Reflexões inanimadas sobre a Tortura - PARTE 1


Maat, a cadeira da verdade.


Área de Serviço


Eram quatro da tarde naquele dia de domingo, um domingo como tantos outros em tantos anos, sempre no mesmo local, em frente à porta do quintal, mas longe o bastante para fugir dos últimos raios de Sol e pegar bastante vento. Todo domingo era a mesma coisa, eu ouvia o Seu Figueiredo gritando animado para Benedita.

- Benedita! Benedita! Trás a cadeira para perto da porta que eu quero tirar uma pestana.


Sempre falava a mesma coisa e a Benedita que vinha correndo e na sala me empurrava para perto da porta que eu ficava no mesmo lugar, onde no chão da área de serviço, quatro quadrados mais claros marcavam o local exato onde eu sempre fico, e Benedita não podia errar o lugar, pois o Seu Figueiredo ficava com raiva, não admitia que eu ficasse um milímetro fora do espaço.


Eu ouço as historias do Seu Figueiredo há anos, desde que ele me “comprou” da pessoa que me criou. Um homem calado e de expressão séria, mas feliz, a cada peça que fazia, seja móvel ou escultura um sorriso rápido surgia em seus lábios, os olhos escuros brilhavam e ele suspirava. Sua fama de carpinteiro era grande, mesmo não atendendo a todos, ele escolhia seus clientes e Seu Figueiredo por ser tão querido no lugar foi presenteado com essa cadeira, meu criador não aceitaria dinheiro, mas Figueiredo, teimoso que só ele, amarrou o dinheiro com um barbante e jogou dentro da casa do carpinteiro e saiu correndo, daquele dia em diante eu pertencia à outra pessoa. Seu Figueiredo sempre me amou, cuidou para que o tempo não me manchasse, fui feita de Mogno escuro e ele passava verniz para minha cor durar, os pregos e parafusos com os anos afrouxavam, mas ele sempre os apertava. Sempre estive nova, ao contrario dele que envelhecia a cada ano.


O tempo não perdoa ninguém. Achei estranho Seu Figueiredo tão calado naquele dia, suas historias nunca tinham fim, pois mesmo não acontecendo nada de novo que fosse interessante para me contar, ele me falava algo de quando era mais jovem, contou-me coisas que ninguém mais poderia saber, como quando traiu sua mulher, erro esse que cometeu uma única vez e se lamenta até hoje, contou como se sentiu no dia que seu pai morreu e quando matou um homem, com seu rifle em seu tempo no exercito, um meliante que assaltou Carmem, sua filha mais nova, e tudo isso que me foi relatado Seu Figueiredo não havia contado a mais ninguém. Eu passei com ele incontáveis momentos felizes gostaria que ele tivesse ouvido minhas risadas ao menos uma vez, antes daquele domingo que passou tão calado.


O estranhei não ter pedido nem o café, que fazia parte da rotina absoluta das tardes de domingo. A própria Benedita foi o procurar no canto de descanso, pois achou que ele havia caído no sono antes de pedir seu café, mas eu já sabia o que estava acontecendo eu só não queria acreditar. Quando as mãos de Benedita tocaram o braço sentindo a pele fria os olhos dela perceberam semblante sereno, olhos semiabertos e lagrimas prestes a cair. Benedita abriu a boca, som algum saiu, eu achei que ela não conseguiria gritar, mas um berro estridente partiu dos lábios da empregada. Dona Helena, esposa de Figueiredo, entrou correndo no cômodo, em suas mãos linhas de tricô e uma toalha de mesa, ela olhou para Benedita que apontava para o marido da sua senhora. Eu vi aquela cena querendo que o tempo voltasse e o tempo só ficou mais lento, as linhas e a toalha caíram no chão, Helena aproximou-se a passos largos e o tocou na face, acariciou os cabelos grisalhos e chorou... Chorou muito.


A tristeza pairou pela casa o sentimento de vazio sugava todas as emoções, ninguém estava tão triste quanto eu e senhorinha Carmem que ao voltar para casa dos pais quando recebeu a noticia foi direto para a área de serviço, passou uma hora parada na porta me olhando, lembrando-se de tantas vezes que seu pai ficou ali sentado, de quando contou historias para nós e de quando ela o vinha visitar, já adulta. Figueiredo a amava muito e eu também. Benedita a chamou para a sala, inconsolada ela nem se quer ouviu, a empregada teve que puxa-la para que saísse daquele transe de melancolia. Os médicos entraram na sala logo depois, prepararam maca e lençol, em seus semblantes a indiferença de quem faz esse tipo de trabalho há muito tempo, no outro cômodo, na sala, as mulheres choravam e eu continuava em silêncio, somente para eles, na verdade eu chorava tanto quanto elas e não queria que meu amado amigo fosse tirado de mim, mas o que eu podia fazer.


A segunda-feira foi repleta de parentes e amigos, a casa estava cheia e ninguém falava. Menina Carmem estava ao meu lado sem coragem de sentar-se eu a encorajava sem ser ouvida, ela segurava as lagrimas e apertava meu encosto. Outras pessoas apareceram na área de serviço, Arnaldo do armazém da rua ao lado, Marcos que mora na esquina e vários outros, mas quem me surpreendeu quando aparecendo ali foi Eriberto o irmão mais novo de Figueiredo. Os olhos dele estavam vermelhos e inchados de tanto chorar, exalava um leve cheiro de álcool, agachou ao meu lado e chorou baixinho. Muitos anos atrás eles brigaram, mas Figueiredo já o havia perdoado há muito tempo só que nenhum deles deu o braço a torcer para pedir desculpas e Seu Figueiredo achava também que seu irmão ainda continuava com raiva, não mais. Ele pedia desculpas repetidas vezes, sua voz saia como um murmurio para as outras pessoas, mas eu ouvia. O que ele estava sentindo? Sabendo que não teve tempo de se desculpar e agora seu irmão está morto. Qual deve ser a sensação?
Os dias se passaram escuros, mesmo eu estando em frente à porta da área de serviço e o sol que me iluminava boa parte do tempo. Ninguém me tirou daquele lugar por exatos cinco dias, até a Dona Helena entrar na área de serviço, determinada, acompanhada de dois homens de uniforme de alguma oficina, rosto e braços bronzeados e fortes.

- Ali – Dona Helena apontou para mim – Essa é a cadeira que eu quero que levem.
- Tem certeza senhora? – indagou um deles – Essa cadeira está muito bem conservada, madeira boa, deve valer uma boa quantia...
- Apenas leve, rapaz – interrompendo o sujeito – Apenas leve...


Os dois se olharam, assentiram com um movimento de cabeça, um deles me ergueu e foi levando. Saindo da área de serviço para a cozinha, Benedita e senhorinha Carmem olhavam sem falar nada, ninguém tinha coragem de impedir que eu fosse levada, eu era uma lembrança constante da dor e da perda, foi preferível que alguém me tirasse dali a lidar com o sentimento da saudade. Eu penso que foi melhor, pois sem o seu Figueiredo eu envelheceria esquecida em algum lugar.


Colocaram-me em uma caçamba de caminhão, e diferente de outros objetos que estavam ali amontoados eu fui pousada com esmero em um canto solitário, amarrada, mas a corda não roçou na madeira por causa dos trapos de proteção. O caminhão partiu para longe, para a oficina do senhor Artur, meu novo dono.


Senhor Artur era dono de uma loja de artigos usados e sucata. A sucata ficava no quintal, protegida por um grande toldo e amontoada, haviam toneladas de velharias e todas estavam tristes e desoladas, tudo que sentia algo. No galpão ficavam objetos conservados e bonitos, Portas, telefones, mesas e mesinhas, quadros, sofás, camas e cadeiras, eram limpos e expostos a possíveis compradores, lá os objetos eram mais felizes. Eu fazia parte de uma simulação de sala, onde havia um sofá que imitava sons de saxofone e falava com um tom engraçado, como se cantasse a cada palavra, uma mesa fofoqueira, que já foi me contando os acontecimentos dos últimos dias, um cinzeiro de cristal arrogante e amargurado, um vazo que sentia pena das flores agonizantes e um tapete que sentia prazer ao ser pisoteado, chegava a gritar de tão excitado.


Fernanda cuidava da limpeza e quando estava só fazia questão de usar os moveis. Deitava na cama, que igual ao tapete sentia prazer no ato, a mesa fofoqueira me contou que a cama veio de um motel. Sentou no sofá e em mim, elogiou-me reconhecendo o móvel de boa qualidade, tirou os sapatos e esfregou os pés branquinhos e bem cuidados no tapete que ficou sem voz de tanto prazer. As compras eram raras ali, a sucata era mais rentável, muitos só olhavam os itens do galpão, cinco dias se passaram até o jipe estacionar na porta da loja.
Três militares entraram no galpão, senhor Artur logo atrás, nervoso e de riso amarelo. O primeiro militar, Tenente Fonseca examinava os itens expostos, caminhou para um local com varias cadeiras e poltronas, seus olhos em brasa verificava as cadeiras, enquanto Artur gaguejava qualidades aos produtos, nenhuma o agradou, o tenente deu meia volta para sair do local.


- Senhor! – Apontou o soldado – E aquela cadeira?


Fonseca virou o rosto lentamente e seus olhos cravaram em mim, sua expressão, por um segundo, foi de alguém maravilhado.

- Quanto? Aproximando-se do vendedor.

Não ouvi o preço nem a negociação, mas o tenente me comprou e pediu para os soldados me transportarem com cuidado. Agora eu estava indo no jipe com o Tenente Fonseca, o meu novo dono.


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