O acordo


Murmúrios ressoavam pelo recinto, os espectadores estavam inquietos em seus lugares na arquibancada. Conversavam sussurrando, tentando não fazer barulho. - mas é claro que juntos os sussurros se tornavam um ruído incômodo. – A plateia seguia com os olhos, a movimentação da doutora, que organizava, sem pressa, suas anotações e instrumentos.
Nos assentos de madeira lustrosa, polidos pelos funcionários da casa, horas antes do evento, algumas dezenas de cavalheiros, trajando paletós e cartolas, começavam a se acomodar. Muitos deles acompanhados de suas esposas, as mulheres sempre muito elegantes, todas usando chapéus, algumas de echarpe e casacos de pele, combinando com o clima frio, rotineiro de Londres e exaltando a condição monetária de seus maridos. Os convidados representavam as mais variadas posições na sociedade Londrina, empresários, chefes de polícia, médicos, cientistas, engenheiros, políticos, advogados e juízes. Todos eles fazendo papel de testemunha do caso que começaria em poucos instantes.
Os motivos que os trazia para a sessão caberiam em uma pequena lista. Investigação era um deles, pois crimes aconteceram e de alguma forma estariam ligados ao acusado. Outro motivo era o estudo científico, presenciar um parecer médico não era comum, principalmente de um doutor renomado. Mas o maior deles era o espetáculo, assistir um show envolvendo um mistério atiçava a curiosidade mórbida dos convidados.
No centro do salão, na parte mais baixa em relação aos espectadores na arquibancada, aquele atípico julgamento era organizado. A médica já havia preparado sua mesa, junto com um enfermeiro que olhava de instante em instante o corredor que vinha por baixo dos assentos, pois em pouco tempo, o réu adentraria no local.
As vozes da plateia, que anteriormente estavam suprimidas em respeito ao evento, agora eram eloquentes devido à impaciência. A médica olhou toda a arquibancada, que descrevia um semicírculo, ela pensou em repreendê-los, mas neste momento a porta foi destrancada. O estalo da fechadura silenciou o auditório, que fixaram seus olhares interessados na saída do corredor.
O grupo chegou à pequena arena, sob os olhares de julgamento dos presentes, já acomodados em seus lugares. Uma pequena comitiva de seis homens, dois deles eram enfermeiros, o mais forte, de feições duras e bigode pontudo, empurrava a cadeira de rodas com o acusado, logo atrás, a dupla que conduziria a audiência, o psiquiatra, com seu jaleco impecável, cabelo bem arrumado e monóculo de armação dourada, e o oficial, o mais jovem entre eles, que já ostentava broches de patente alta e condecorações em seu uniforme, repassavam a história contada pelo suspeito, em uma conversa particular. Por último um escrivão, que parecia sonolento, já que seu trabalho era normalmente na parte da manhã, naquele horário estaria em sua cama, bebendo leite morno, antes de dormir.
A doutora estava ao lado da cadeira de força, indicando ao enfermeiro, onde o réu ficaria preso. A cadeira foi instalada de manhã, um móvel pesado, feito de madeira maciça, presa com cravos de ferradura, além de ser reforçada com barras e chapas de aço. Um assento feito especialmente para os lunáticos furiosos de Bethlem.
- Enfermeiro, ponha este homem na cadeira de força, mãos e pés nas amarras, mas deixe com folga, por enquanto. – Ela deu a ordem, enquanto refazia o coque em seus cabelos negros.
- Doutora Thompson, eu entendo que em sua área amarras não são comuns, mas aliviar com esses lunáticos, não é a melhor opção. Não acha melhor deixá-lo preso de uma vez? - O enfermeiro que questionou era o mesmo que empurrava a cadeira.
-Fritz! – Quem chamou a atenção foi o psiquiatra. – Recolha-se a sua insignificância, você é um simples enfermeiro, então se limite apenas a cumprir ordens. A Doutora Thompson tem razão, não precisamos restringi-lo agora. – Ele respondeu pela doutora, que agradeceu acenando com a cabeça e se juntou à dupla.
A conversa sobre não restringir o acusado naquele momento era um tanto quanto irônica, pois o rapaz chegou ao local trajando uma espécie de colete, por cima de uma roupa muito grande para seu corpo, usada para vestir enfermos. O peculiar traje era composto de várias tiras de couro rígido e grosseiro, com o propósito de reduzir os movimentos do pescoço, tronco e ombros, e um cinturão que restringia os movimentos da cintura e pernas.
Após uma pequena reunião entre os médicos e o oficial, decidiram por iniciar o julgamento. A doutora e o enfermeiro que estava com ela inicialmente foram para a mesa com os instrumentos, o escrivão já ocupava seu lugar, junto à máquina de escrever, os outros enfermeiros continuaram próximos ao acusado, o oficial sentou-se em uma cadeira, o psiquiatra chamou a atenção de todos os presentes e dirigiu-se a um púlpito. A tribuna possuía uma elegância do passado, já que era o item mais antigo da casa, bem ornamentado na frente, onde o público podia ver, mas decrépito por dentro; estava distante cinco metros do acusado.
- Boa noite senhoras e senhores, meu nome é Doutor Alexander George, sou psiquiatra do Hospital Real Bethlem. - Os espectadores ficaram surpresos, pois todos conheciam o passado sórdido da instituição, mesmo que no presente momento muito fora melhorado, mas as lendas nunca morrem. - Este caso me foi dado, para fazer as devidas avaliações, e determinar a sentença do acusado, sob os relatos confessados ao Oficial Harley Dominic e suas exigências - Doutor George olhou, por cima dos óculos, para o investigador - e com isso eu passo a palavra para o Oficial.
O policial caminhou até o local onde começaria sua apresentação.
- Boa noite senhoras e senhores, eu sou o Oficial Harvey Dominic da Scotland Yard, fiquei encarregado deste mistério após o oficial anterior ter se aposentado. O caso foi para o arquivo morto, por falta de evidências e por não ter havido nenhum ataque durante os últimos cinco anos. Acontecimentos que já se tornavam uma lenda dentro do departamento, mas na terça-feira, dois dias atrás, eu recebi uma carta do homem que dizia ter cometido os crimes.
Os espectadores se mantinham em total silêncio, concentrados no discurso do policial. Alguns garçons passeavam por entre os acentos entregando chá e biscoitos, principalmente para as mulheres, os homens se contentavam com seus cigarros, alguns, ostentavam charutos importados ou imponentes cachimbos.
- Mas antes voltemos ao passado para relembrar alguns acontecimentos - O oficial abriu um pequeno bloco de anotações. - O primeiro caso registrado foi o assassinato do Senhor Carew, espancado com socos, pontapés e golpes de bengala, o crime foi visto por uma criada, ela relatou a Scotland Yard que um homem enorme de voz gutural matou aquele senhor, como era noite ela não viu a face do assassino. – Os donos de fábrica demonstraram pesar em suas feições, pois o senhor assassinado era da mesma classe que eles. - Outros casos foram relatados mensalmente, pessoas que avistaram um gigante nas ruas, relatos sobre uma figura pulando pelos tetos dos edifícios, roubos em bares e bordéis e estabelecimentos completamente destruídos.
O oficial parou para beber um pouco de água e pegar uma pasta de evidências, nesse curto movimento olhou para o acusado, pensou que poderia vê-lo vacilando ao ouvir os fatos. Sentado e contido, o homem parecia estar em transe, seus olhos castanhos estavam fixos em um lenço que caiu da plateia, de expressão impassível, tanto para manter sua postura, não queria transparecer nada para a equipe ou a plateia, mas principalmente, mostrar que tudo estava sob controle, o que não era verdade, pois o suor pingava de seu rosto e todos os músculos estavam tensos.
- Chegaram nove de boletins de ocorrência a sede da Scotland Yard, trazidos por um investigador que atuava na periferia. Uma ocorrência por mês, antes do assassinato do Senhor Carew, os boletins com basicamente a mesma descrição: Relatos de um gigante que devorava os animais daquela gente, comendo patos, galinhas, ovelhas, e, até mesmo, por incrível que pareça, relatos de bois e cavalos devorados. Então começamos a ligar os casos de prostitutas desaparecidas, estupradas e mortas, com corpos espancados, mutilados e despedaçados - Algumas mulheres se espantaram - Sim damas e cavalheiros, as atrocidades vão muito mais longe. Casos que fizeram policiais renomados terem pesadelos, histórias que deixariam nossa Londres apavorada.
Dominic abriu a pasta com o bloco de fotografias e começou a mostrar as fotos para todos os presentes, tanto a equipe, quanto os espectadores. Os primeiros retratos eram restos de animais, três ovelhas sem as patas traseiras, duas delas sem sangue, galinheiros inteiros sem nenhum animal, duas vacas sem carne nas patas e tórax, com as costelas roídas. Os moradores da periferia costumavam manter pequenas criações, para abate, que os servia como alimento e fonte de renda. Normalmente as queixas com a polícia eram de roubo dos bichos, e pouquíssimas vezes, sobre rebanhos devorados por predadores.
Dominic trocou o bolo de fotografias de animais, por um álbum, um caderno grosso e pesado, onde na capa estava escrito “Confidencial”. A primeira metade do álbum com fotos de mulheres que foram dadas como desaparecidas inicialmente, a segunda metade mostravam as mesmas mulheres mortas, assassinada na verdade. Cenas grotescas de espancamentos, desmembramentos, corpos encontradas em vielas, bueiros, parques, algumas foram estupradas e mortas em seguida. Imagens que causaram muito espanto aos espectadores, os políticos não conseguiam olhar e as mulheres, com toda etiqueta que lhes fora ensinada na mocidade, gritaram fazendo escândalo na plateia, algumas chegaram a passar mal e desmaiar. Todos ficaram chocados, muitos haviam se esquecido de tudo que aconteceu no passado, outros lembravam vagamente, mas ver aquelas fotos reacendeu uma chama hipócrita nos presentes e automaticamente sentiram empatia pelas vítimas esquecidas, começando uma sessão de xingamentos contra o acusado.
- Senhoras e senhores, mantenham a compostura, a sessão está em andamento, quem não quiser continuar, sinta-se a vontade para se retirar. - O psiquiatra chamou atenção da plateia – Se quiserem continuar, é preciso ordem!
O silêncio voltou gradativamente, mesmo com ojeriza, a curiosidade falava mais alto.
- Por quatro anos, os ataques aconteceram e o mistério continuava sem solução, não havia suspeitos, nem pistas para seguir. Eu poderia descrever inúmeros crimes, mas não é necessário, pois os relatórios estarão disponíveis para os senhores lerem. - Dominic acenou para o enfermeiro que acompanhava a doutora - A bengala, por favor.
O enfermeiro entregou o item ao oficial. Uma bengala elegante e robusta, de aço da cor preta, com entalhes ao longo do cabo, invisíveis sem o brilho de alguma luz. A empunhadura era uma cabeça de leão, toda de prata. Um item magnífico, que poderia ser de um herói de guerra, mas era uma evidência.
- Este item, foi entregue pelo acusado no dia de sua confissão, vejam que o cabo está empenado – Parou a explicação por um momento, procurou um álbum específico, com as fotos do crânio do Senhor Carew – Percebam que rosto deste leão de prata está gravado no crânio do pobre senhor, as marcas entram perfeitamente, segundo os exames nos ossos exumados do falecido. – A plateia examinava o item, enquanto comentavam indignados uns com os outros. – Relembrado alguns fatos, posso começar o relato da confissão.
O jovem oficial pulou algumas páginas de seu bloco de anotações, preenchidas com comentários, fluxogramas e muitas perguntas. Dominic parou em uma folha, com uma das pontas rasgada, marcando o ponto que queria, ali estava anotado tudo o que foi confessado pelo acusado.
- Como lhes disse anteriormente, a carta chegou de manhã e logo após o almoço, fui ao local indicado no documento. Uma casa grande, com a frente decadente, janelas quebradas e pintura descascando, construída em uma área nobre afastada da cidade, rodeada por um bosque. O homem que está preso nesta cadeira – Apontou para o acusado sem olhar para ele - me recebeu, trocamos uma meia dúzia de palavras, seu vocabulário sofisticado entregava sua educação nobre, mas a aparência não estava melhor do que vocês podem perceber aqui. Parecia estar doente, entregue ao álcool e narcóticos, olheiras profundas mostravam privação de sono, falta de higiene e má alimentação. Um indigente diplomado com uma bela moradia entregue ao tempo. - A plateia riu um pouco. - Ele me convidou para entrar. Não aceitei. Sugeri que conversássemos no terraço, acomodados nas cadeiras do local, não ficaria confinado na sala de um suspeito de múltiplos assassinatos. Ele aceitou sem hesitar, me pediu apenas um momento, entrou rapidamente e pegou uma garrafa de whisky; que devia ser o único amigo daquele pobre-diabo.
Dominic retirou seu distintivo do bolso dentro de uniforme, para girar em seus dedos. Deixou o púlpito, preferia ficar em movimento, andava de um lado a outro seguindo a curva da arquibancada, fazer isso o ajudava nas escolhas das palavras; era o melhor orador da Scotland. Os espectadores apenas o seguiam com os olhos, hipnotizados pela palestra.
- Ele começou se apresentando academicamente, formado em medicina, entrou no ramo de pesquisas, até tornasse um cientista, mas no presente... - Deixou o óbvio no ar. - Disse que o projeto de sua vida era criar a paz, separar e erradicar o mal que reside em todas as pessoas e assim criar um mundo sem guerras. - A ideia apresentada fez os espectadores soltarem risadas novamente. - Então ele criou uma fórmula, uma poção, que extirparia o mal, o problema começou com essa descoberta. Precisava testar seu invento, mas por conta de sua ética e moral, não testaria em outras pessoas, então ele teve a ideia de beber a fórmula, de modo que não arriscaria a saúde de outros, caso houvesse efeitos negativos.
O policial continuou com a apresentação da confissão. Após produzir a fórmula ele a consumiu, inicialmente não houve rejeição, mas nada demais aconteceu, pensou que havia fracassado. Uma hora depois, enquanto se organizava para deixar o laboratório ele se sentiu estranho. Um sentimento em seu âmago, como se um segundo pensamento surgisse em seu cérebro e essa consciência rugia como uma besta, ele perdeu as forças e apagou.
- O acusado acordou em casa, era de manhã, vestido com trapos e o resto de seu jaleco rasgado, todo sujo de sangue... - Houve espanto da plateia por conta da pausa dramática de Dominic - Sangue de aves, galinhas e patos, penas coladas em seu corpo. - Gargalhadas ecoaram pelo salão. - Ele não fazia ideia do que havia acontecido, tentou ficar de pé e passou mal, vomitou pedaços mal digeridos de animais, bolas de penas e lã, pedaços de ossos que arranharam sua garganta, até mesmo, madeira de cerca. Mesmo assim, com tanta porcaria rejeitada por seu estômago, ele se sentia ótimo, era como abrir bons presentes de aniversário. Agora, mais do que nunca, queria entender melhor o que havia acontecido.
A descrição fazia a plateia ter ainda mais curiosidade sobre o caso, não conseguiam imaginar o que essa misteriosa fórmula fez com o acusado. O primeiro teste fez o doutor querer aprimorar seu invento, não queria sofrer com a falta de controle sob o corpo, a amnésia também era um problema que precisava ser corrigido. Com esse pensamento, usou todos os esforços para ter sua fórmula melhorada. No início, a preparação demorava um mês, e após mais de meio ano, nove doses ingeridas, ele estava viciado. Não houve melhoras nos efeitos colaterais, isso foi a deixa que ele precisava. Acelerou o processo de fabricação, usando o próprio dinheiro, conseguindo mais matéria prima, sua produção aumentou para uma fórmula por semana e finalmente algo novo aconteceu. Pesadelos horríveis atormentaram suas noites.
Dominic voltou ao púlpito, assumindo uma postura mais soturna, querendo impressionar as damas e os cavalheiros; e estava se saindo muito bem.
- Os pesadelos do acusado, nunca mostravam seu rosto, mostravam sempre ações. Andando pelas ruas, pelos tetos, invadindo depósitos e bares, roubando bebidas e dinheiro, destruindo patrimônios e mais uma sorte de coisas. Lembram-se dos animais devorados na periferia? – Como se estivesse coreografado, os espectadores moveram a cabeça positivamente, ao mesmo tempo. – Começaram pesadelos comendo animais, sua preocupação começou aí. Até que em uma noite ele sonhou com o espancamento do Senhor Carew e viu as mãos do agressor, mãos como se fosse ele executando a ação, mas eram membros monstruosos! – O oficial encarou o auditório, fez suspense – Uma voz monstruosa o chamou e começou a conversar com ele.
Todos ficaram chocados, era muita informação a ser digerida, e as dúvidas foram aparecendo. Perguntas surgiam aqui e ali: Quais os efeitos da fórmula? Porque ele sempre pedia a memória? O que significavam os pesadelos? E agora, um monstro. Dominic bateu seu distintivo no púlpito algumas vezes, que fez os presentes voltarem à atenção, a história era tão interessante, que para eles era como estar em um teatro vendo uma cena de mistério, ao mesmo tempo em que uma atração bizarra do circo era anunciada.
- Ele novamente me pediu licença, para entrar em sua residência. Desconfiei de seu pedido, não sabia se era prudente de minha parte, deixá-lo sair de minha visão, mas ele não demorou muito; trouxe um item embrulhado em um pano, era a bengala. – Erguendo a evidência, lembrando a plateia da arma do crime. – Ele me contou o resto da história, disse que o monstro falava com ele, nos pesadelos, que já morava em seu cérebro e não precisaria mais de fórmula para assumir o controle. Temendo o pior, doutor parou de usar a poção, lutou contra o vício, foram os dias mais difíceis de sua vida, mas conseguiu parar. O problema é que a criatura havia dito a verdade, e mesmo sem a fórmula, ele perdia a consciência para a tal criatura. A fim de resistir às investidas daquela personalidade, criou um novo remédio, com a finalidade de conter a consciência assassina. O acusado - Dominic percebeu que era observado - falou que a besta fez tudo isso, mas que ele era o culpado por se deixar levar pelos efeitos da fórmula.
Dominic encerrou sua palestra, foi ovacionado pelo público, agradeceu a todos, estava orgulhoso, pois iria fazer a prisão da década, talvez do século. Doutor George, o psiquiatra, foi ao púlpito, após agradecer o policial por sua participação. Diferente do oficial, que trouxe pastas e evidências, o médico pousou sob a tribuna seu parecer sobre a situação mental do acusado, um documento com apenas seis folhas, e a exigência para assumir o papel de culpado.
- Um homem diplomado, mestre e doutor, com títulos e finos modos. Consumido pela culpa dos erros cometidos, entregou-se a uma vida miserável e agora não aguentando mais conviver com tudo isso, cria todo um teatro, envolvendo descobertas, drogas e fantasia. Está usando esse absurdo como uma desculpa, o acusado vai assumir todos os crimes se for preso em Bethlem e só usar seu medicamento. - O tom desacreditado do psiquiatra fazia todos debocharem do acusado. - Não vivemos mais no passado, temos tecnologia, máquinas, luz elétrica! Não precisamos temer os demônios do escuro, pois eles não existem, não venha com loucuras, eu sei diferenciar, você não é uma atração de circo, é só um assassino covarde!
O psiquiatra foi para frente do púlpito.
- Já faz horas sem sua medicação e nada aconteceu, - Doutor George pensou um pouco. - Mas eu tenho certeza que nada vai acontecer - Ele andou até próximo do acusado - Você não falou nada até agora, então quero te perguntar uma coisa, Doutor Henry Jekyll, para você o que é um monstro?
Psiquiatra e cientista se olharam, a expressão altiva de um contra um olhar cansado e furioso do outro. Doutor Jekyll tentou falar algumas palavras, mas sua voz saiu grossa, rouca e falhada, pois fazia um bom tempo que não falava nada. Os espectadores ficaram surpresos com os grunhidos do doutor.
- Eu quero ver o monstro! - Catharina gritou da plateia, uma mulher exuberante, esposa do juiz.
A plateia inteira riu, inclusive o juiz, marido de Catharina, que mesmo achando uma graça, chamou a atenção dela com leves puxadas na barra de seu vestido vermelho, pediu para que voltasse ao seu lugar. Ela sorriu de um jeito meigo e sem jeito, acenou a todos e sentou-se, o silêncio voltou a reinar.
- Eu posso lhe responder essa pergunta - Henry Jekyll limpou a garganta mais uma vez - Monstro é apenas um dos nomes para aqueles que não estão alinhados com a sociedade, que não são considerados damas ou cavalheiros. Monstros são os desgraçados, miseráveis, transviados, desafortunados, adúlteras, prostitutas, imundos, desprovidos, doentes, viciados, criaturas desprezadas por essa sociedade podre, que se acha superior. - Doutor Jekyll passou os olhos por toda a arquibancada. - Aquilo que eu estou querendo ocultar é real, eu preciso do remédio, por favor, senhores, eu quero poupar vocês de um destino horrível.
- Bobagens! É só isso que eu ouço saindo da sua boca – Desdenhou da súplica do acusado. – Eu não acredito em nenhuma dessas histórias, você quer se prevalecer de nossa justiça, quer ficar como um hóspede em Bethlem e beber sua droga, até o fim de seus dias! Como é que eu, um profissional honrado, posso concordar com isso? Sua exigência está vetada! – Os espectadores aplaudiram a firmeza do doutor.
- Isso não é verdade Doutor George! Se esse é o caso, pode me prender em uma cela comum, ou em um porão! - Jekyll se acalmou antes de continuar - Mas não me deixem sem a fórmula, ou o monstro nunca mais poderá ficar preso.
Os espectadores voltaram com os xingamentos e principalmente exigiam que ele se transformasse de uma vez. Doutor Jekyll se concentrava o máximo para não ceder.
- Estamos esperando essa monstruosidade aparecer e nada! - O psiquiatra debochou, e foi emendando uma provocação. - Por que será?
- Todas as minhas forças são para contê-lo, Seu rugido faz minha cabeça doer, e minha mente querer falhar, se ele sair, vocês vão se arrepender!
- Cheio de ameaças, mas nada acontece. Se você está tão resiliente, então o forçaremos a sair - O psiquiatra fez um sinal para o enfermeiro que trouxe o acusado – Palmatória!
Fritz, o enfermeiro de expressão carrancuda, foi buscar o objeto, foi a primeira vez que ele sorriu após tanto tempo de julgamento. A palmatória era um dos modos aprovados para a disciplina dos lunáticos, uma grande régua, com uma chapa de ferro na ponta, para bater na mão de quem desse trabalho. Como o acusado havia falado que seus esforços estavam contendo a criatura, o enfermeiro usaria a palmatória da disciplina para quebrar a fibra que restava do doutor Jekyll.
O primeiro golpe não esperou a confirmação do psiquiatra. As mãos do acusado estavam sobre o braço da cadeira, fácil de mirar, a palmatória desceu com velocidade e força, acertando em cheio as costas da mão. A pele ficou marcada com a pancada, os nós da mão incharam na hora e o grito de Jekyll fez todos aplaudirem.
- Seu idiota! Eu não autorizei a correção ainda - Doutor George repreendeu o enfermeiro - Aperte as amarras antes e pode disciplinar mais uma vez.
- Perdão Doutor, é que minha mão escorregou. – Risadas abafadas escapavam entre os lábios de Fritz.
A segunda Correção foi devastadora, vasos sanguíneos romperam, deixando a mão escura, e mais gritos do acusado, que implorava que parassem. O terceiro golpe foi nas pontas dos dedos, por um pequeno desvio de trajetória, as unhas escureceram, uma delas caiu, e a pele rompeu, sangue escorria pelo braço da cadeira e pingava no chão.
- Doutora Thompson, Oficial Dominic, por favor, eu estou implorando! Façam a dor parar! - A voz de Jekyll já estava diferente - Ou apenas dê-me a fórmula para beber, ele está vindo - A doutora olhou para ele - Doutora veja os meus olhos, eu não estou mentindo! – Ele rugiu para a médica.
Os olhos de Jekyll estavam cinzentos, enquanto feições grosseiras mudavam seu rosto. A doutora não sabia se aquilo era real. Jekyll urrava, enquanto o psiquiatra falava diretamente com a plateia evidenciando como era teatral os escândalos do acusado.
Os ossos do corpo do doutor Jekyll deslocaram, cresceram, ficando mais longos e grossos, voltando para o local em seguida. O colete de contenção ficou pequeno para aquele corpo que ganhou volume do nada, as tiras começaram a romper. Fritz ficou estático vendo aquele magrelo tornar-se um gigante. A plateia que estava inflamada pelo show, agora estava horrorizada, pois poucos metros a frente, um ser inexplicável realmente aparecia, o único que não viu na hora foi o psiquiatra, muito ocupado com suas ironias e deboches.
A mandíbula cresceu desproporcional, assim como as maçãs do rosto e a testa, ficaram proeminentes, parecia um exemplar dos antepassados dos homens. Dentro da boca, dentes caíram, tintilando nos azulejos do fórum, dos buracos que ficaram, uma nova arcada crescia rapidamente, até dentes a mais surgiram. Corpo de musculatura avantajada, com os ossos das juntas bem aparentes, ombros largos, braços mais longos proporcionalmente, pernas feitas para saltar. O monstro se pôs de pé, roupas rasgadas, rosnando como um lobo.
- Se toda a história que o Doutor Jekyll contou, não passou de mentiras para vocês - O psiquiatra ficou em choque ao ouvir uma voz gutural alguns metros atrás dele - Espero que possam acreditar nas palavras da abominação!
Os últimos ossos se alinharam em seu corpo, ele inspirou o máximo de ar que pode. Ninguém ousava falar uma palavra, estavam boquiabertos com o tamanho daquela figura dantesca. Alguns segundos depois ele soltou o ar aprisionado, parecia estar em êxtase.
- Que saudade eu senti de você, minha Londres! Seu perfume é inconfundível, o cheiro das Chaminés das fábricas, do esgoto a céu aberto, as ruas úmidas cheias de esterco e roedores, o cheiro de uma centena de prostitutas, espalhadas pelas vielas. O aroma podre dessa sociedade – Os olhos cinzentos da criatura examinava a plateia – E é claro, o melhor de todos os perfumes, o medo!
O primeiro movimento do gigante foi tomar a palmatória de Fritz, o enfermeiro nem reagiu, só fazia soluçar em choque. O pobre homem recebeu um tapa do instrumento, direto na bochecha, a carne ficou agarrada no metal, não houve uma passou que não viu o interior da boca do enfermeiro até o sangue cobrir tudo. O segundo movimento foi um soco no tórax do homem, antes mesmo dele gritar de dor, um golpe tão poderoso que ele se chocou contra a parede, ao lado da doutora; o corpo de Fritz caiu mole no chão. Em seguida, arremessou a cadeira no psiquiatra, mas por causa de uma amarra, ainda presa em seu pulso, à cadeira mudou de direção, explodindo na plateia e matando um casal perfurado por pedaços de madeira e ferro.
O pânico se instaurou, a grande maioria fez o que pode para alcançar a saída, poucos ficaram simplesmente observando, em choque, a criatura. Sete policiais e dois homens sacaram suas armas, a equipe estava imóvel por estar muito próximo do brutamonte, a doutora checou o enfermeiro golpeado, o tórax e o crânio foram severamente machucados, mais um cadáver.
Os outros enfermeiros atacaram o monstro, armados com tranquilizantes em seringas, o ogro não os viu chegando, mas a ação foi falha, pois as agulhas não perfuraram a pele da criatura. Ele se virou, encarou os dois e os segurou pela cabeça, ouviu os policiais gritando, exigindo que ficasse parado, mas o Perverso não os ouviu e afundou os enfermeiros em seus corpos, metade do chão era uma poça de sangue.
O psiquiatra correu em direção à turba de espectadores, esbarrou em quem estivesse à sua frente, seu monóculo pulou de seu rosto e sumiu na bagunça. Os policiais procuraram abrigo, amontoaram os assentos a fim de montar uma cobertura. O monstro foi até a doutora, fungando, sentindo o perfume dela, com um sorriso canalha, mostrando os dentes mal organizados na gengiva.
- Eu deveria te matar, por não falar nada no julgamento, você me parecia mais corajosa... – Foi interrompido pelo escrivão que havia desmaiado, pois via a transformação de muito perto, ao acordar se deparou com uma aberração a sua frente e começou a gritar. – Silêncio verme! – Por um momento ninguém falou, mas logo voltou o alvoroço – Podemos esquecer isso, já que foi boa com meu amigo antes do julgamento... - O escrivão, chorando como uma criança fazia o monstro perder o raciocínio. – Depois que eu acabar aqui, você pode ser boa comigo também... – Os soluços e fungadas consumiram toda a paciência do ogro, que rugiu para o escrivão e o golpeou na cabeça, de cima para baixo, como uma pancada de martelo, vértebras rasgaram a nuca e saltaram por trás do pescoço do homem. - Como eu dizia, vou te poupar.
Tiros foram disparados, mas o efeito era muito reduzido, arrancavam apenas um filete de sangue do monstro. Ele olhou para o grupo de policiais e gritou o nome do oficial, fez uma referência a doutora e disparou, saltando em seguida, aterrissando em cima de um chefe de polícia; a bacia do homem se partiu e rasgando a virilha. Segurou um soldado próximo, arrancou o braço direito com uma mordida, sangue jorrou do local, aproveitou e arremessou o soldado em um terceiro homem da lei, mas percebeu que nenhum deles era o oficial. Urrou furioso e procurou pelo local, no centro da arquibancada viu Catharina, rezando ajoelhada. A maquiagem estava borrada por causa das lágrimas, deixou um caminho preto, escorrendo pelas bochechas rosadas, abaixo de seus olhos verdes. Eles se entreolharam.
Ignorando todos novamente, não conseguia resistir ao avistar uma mulher, a besta saltou aterrissando bem a sua frente, sentiu o doce perfume francês, sentiu a maciez de seus cabelos loiros e da pele do rosto, limpou um pouco do borrão escuro em volta dos olhos dela; mesmo que tivesse sujado de sangue o rosto de Catharina. Colocou-a de pé e rasgou o vestido dela, tão fácil como rasgar um algodão doce. Seu olhar examinou cada centímetro daquela beleza, então elogiou seu corpo perfeito, aproximou sua bocarra do ouvido dela, e teceu comentários pervertidos e sórdidos sobre a nudez e o sexo da senhorita. Ficou de joelhos para falar olhando nos olhos.
- A senhorita gostou do ver o monstro? Quando isso acabar, podemos nos divertir bastante. – O gigante lambeu Catharina começando pela cintura, acompanhando as curvas do abdome, divagando sobre o seio, até chegar ao queixo, o corpo dela ficou inteiramente arrepiado. – Faz muito tempo que não provo uma mulher tão esplêndida...
Antes que pudesse continuar, sentiu mais balas em sua pele. Os quatro policiais, incluindo Dominic e os dois homens armados estavam juntos com armas apontadas para o perigo.
- Doutor Jekyll, fique parado, renda-se ou iremos te executar como um cão! - Ordenou Dominic.
- O Doutor não existe mais! Vocês entenderam? Não há mais volta! - O urro do gigante fez os espectadores pararem – Prestem atenção, ele tentou, vocês não o ouviram, Jekyll foi uma pessoa boa, gentil e de nobre coração. Possuía um projeto muito bom, que não deu certo. Ele poderia ter continuado escondido, conviver com a culpa e esperar o caso ser esquecido por completo, mesmo assim, ele se entregou, contou toda a história, mostrou as evidências e só pediu seu remédio, vocês pagaram para ver e eu estou aqui.
A criatura andou calmamente em direção aos homens armados, eles dispararam sem pensar, os projéteis continuavam sem surtir efeito, ele se apoiou na perna esquerda e saltou, investindo contra seus atacantes. O primeiro policial recebeu todo o peso do corpo do monstro, parecia ter se chocado contra uma parede, foi derrubado, a aberração nem precisou atacar, apenas continuou andando, pisou na cabeça do homem, que estourou espalhando os miolos. O segundo guarda estava com o braço estendido para atirar, mas não teve chance, a criatura apertou o membro, um pouco acima do cotovelo, carne e sangue escorreram por entre os dedos, o local ficou seco e espremido como uma laranja, em seguida arremessou o soldado contra a multidão.
Os dois homens largaram as armas e fugiram desesperados, enquanto o terceiro agente encostou sua pistola no peitoral da Criatura, mas não havia balas. Sem pressa ele agarrou o ombro do rapaz, com a outra mão segurou a cabeça do homem e girou, lentamente, fez Dominic, que estava logo atrás, encarar a expressão morta de seu parceiro de trabalho. Finalmente Harley Dominic estava de frente para a besta.
- Últimas palavras Dominic? - O oficial apenas soltou a arma e abriu os braços, queria acabar de uma vez com aquela humilhação, encarando a morte com coragem. – Mas que surpresa, você quer um abraço?
O monstro envolveu Dominic em seus poderosos braços, gemidos esganiçados escaparam dos lábios do investigador, ele apertava com tanta força os dentes que suas gengivas começaram a sangrar. O primeiro estalo foi das costelas, o ar saiu de uma vez pela boca, depois alguma vértebra se partiu, as pernas que se debatiam freneticamente, perderam os movimentos, outros ossos quebraram e se deslocaram. Pela boca e narinas do oficial, escorria uma cachoeira de sangue e vômito. Os olhos saltaram das órbitas, fraturas rasgavam a pele, o uniforme do oficial ficou ensopado, tripas escorreram pela perna. Em pouco tempo a vida daquele corpo se esvaiu, era apenas um saco de carne humana, que foi desprezado entre as cadeiras. Sem mais distrações, era hora de procurar o psiquiatra, que não foi uma tarefa difícil, pois o doutor exalava um perfume único, o cheiro do medo misturado à loucura. A mente bem organizada daquele profissional não aguentou a visão de um ser que beirava o fantástico, e se despedaçou. Doutor George estava espremido na porta de saída
Ninguém havia conseguido sair, pois o pânico transformou as pessoas em animais, que brigavam pela liberdade. A massa de pessoas tentava empurrar portas reforçadas, que abriam para dentro, quem estava junto às portas sabia o que fazer, mas quem estava no fundo só pensava em ir para a saída, e a cada urro da criatura, eles ficaram ainda mais desesperados. Ao perceberam a besta correndo inexorável contra eles, o aglomerado se desfez, pois preferiram se espalhar pelo local. Pelo menos duas dezenas foram atropeladas, caindo aleijados pela arquibancada, ou arremessados, se chocando contra a parede ou, até mesmo, o teto; esse foi o único jeito de haver espaço para a porta ser aberta.
Pelo menos doze pessoas passaram pelo portal para o corredor de saída, nenhum deles poderia ser classificado como damas ou cavalheiros, eram apenas homens e mulheres tentando sobreviver. Do grupo que passou pelas portas, o primeiro colocado era o Doutor George. O corredor era grande o bastante para duas pessoas lado a lado. A abominação atravessou o portal, seu corpo era grande o bastante para ocupar todo o corredor, era como um trem passando por um túnel escavado na montanha. A vida deles dependia do quanto conseguiriam correr, mas não foi o bastante, novamente o peso e a força do gigante fez vítimas, apenas um conseguiu escapar, pois se encolheu no canto da parede. O ar frio da noite Londrina entrava pela boca do doutor, uma sensação ótima, mesmo naquele caos, pois sua garganta parecia estar em brasa com todo aquele esforço, faltou pouco para o Psiquiatra conseguir chegar às ruas, mas suas roupas foram agarradas, ele foi puxado de volta para o corredor.
- Boa noite Doutor Alexander George. – O Doutor era erguido por uma das enormes mãos daquele ser, estavam cara a cara, um chorava e tremia, o outro apenas sorria. – É uma honra conhecer um psiquiatra tão renomado, nós temos muito a conversar. Antes de tudo, peço desculpas pela minha falta de educação, ainda não me apresentei. – A criatura pegou a mão do psiquiatra, como se fossem se cumprimentar. – Muito prazer, meu nome é Edward Hyde, mas pode se referir a mim como Senhor Hyde.


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